quinta-feira, 10 de março de 2016

TRATAMENTO DE CHOQUE


Restam-me as memórias e as fotos desse passado que, se não foi glorioso como imaginara, teve momentos alucinantes de energia, vibração, emoções e prazer.

Meu corpo estava estendido na maca, no meio de um salão, cercado de aparelhos e pessoas estranhas, discutindo meu estado de saúde precário. De alguma forma, eu olhava aquele corpo se contorcendo de dor e não me reconhecia nele. O que acontecera? Por que eu estaria lá? Onde estariam meus amigos? A dor era insuportável... uma prensa esmagava os músculos de meu coração e quase me impedia de respirar. Não conseguia, sequer, pedir ajuda, saber o que houvera...

Veio-me à memória uma correria infernal, eu dentro de um carro, percorrendo a orla da praia no banco de trás de um carro, com uma pessoa pressionando meu peito em um vai-e-vem alucinado e desesperado para me manter respirando e forçando meu coração a bater, apesar da dor. Alguém batia na lataria do carro, enquanto o motorista buzinava energicamente, pedindo passagem. De repente alguém falou, desconsolado: "ele apagou... parou de respirar..." e os movimentos de ressuscitamento se tornaram mais frenéticos... eu estava consciente, ou pelo menos ouvia essas palavras. Para meu desespero, agora eram esses esforços para me manter vivo que estavam me sufocando.

Chegamos a um pronto socorro e fui retirado do carro e colocado em uma maca. Alguns paramédicos cercaram meu leito e disseram que eu deveria ser levado para um hospital. Colocaram-me em uma ambulância e logo começaram a raspar meu peito para a colocação dos eletrodos. Mas a lâmina estava cega e me pareceu enferrujada! Logo, o sangue escorria pela minha pele ferida, diante da indiferença de três paramédicos, que conversavam animadamente sobre assuntos fúteis. Mas eles não conseguiam fazer o eletrocardiograma e a ambulância não saía para o hospital.

No meio de meu sofrimento lembrei-me de uma cena de um filme de guerra de Robert Altmann, chamado "Mash", uma paródia em que a equipe médica operava um soldado, indiferente à dor daquele moribundo, enquanto conversavam animadamente, debatendo as "qualidades físicas" de uma bela enfermeira. Senti-me diante da mesma indiferença. Finalmente desistiram do exame e seguiram para o hospital. Eu continuava sem reações... fui colocado em um grande salão onde meia dúzia de enfermos agonizavam em seus próprios leitos. O hospital não tinha UTI, que fora interditada por contaminação e infecções, comuns nesses estabelecimentos brasileiros... A noite se arrastava naquele salão de hospital, sem as mínimas condições de atender a um infartado. No som ritmado das gotas de soro escoando pelas minhas veias eu não tinha mais noção da hora, nem do que acontecera naquele dia fatídico. Aos poucos, porém, a dor se abrandou e meu pensamento vasculhou aquele dia interminável em busca de um entendimento do que se passara.

Eu acordara muito cedo naquele dia, pois teria que levar um indígena para efetuar um levantamento fundiário de um terreno à beira-mar, em Trancoso. Como de hábito, tomei café da manhã, peguei minha bicicleta e pedalei por 10 km até a sede da Funai em Porto Seguro. Chegando lá, o índio já me esperava, impaciente pelo trabalho que iríamos realizar. Montei na caminhonete e seguimos por horas numa estrada de terra. Atravessamos uma porteira e seguimos por entre árvores e chácaras até que, em dado momento, a estrada se transformou em um areal branco e interminável. Havia trechos em que eu pensei em desistir, pois o veículo serpenteava quase atolado na areia fina e profunda. Com muito esforço chegamos no local. Durante algumas horas percorremos o terreno com meu GPS, registrando o que seria o limite da propriedade. Passamos à beira-mar por uma praia lindíssima e deserta. Tive vontade de tirar a roupa e mergulhar naquele mar tranquilo e limpo, mas o dever me impediu de fazê-lo. Voltamos à Funai, devolvi o carro e peguei minha bicicleta. Mais dez quilômetros, e cheguei em casa, exausto, mas feliz de meu dever cumprido.

Subi as escadas e, ao chegar ao lado da cama, uma intensa dor no peito me atingiu como um forte soco. O peito parecia não poder conter meu coração, e este se espremia, querendo explodir. Nunca sentira tamanha dor! Logo percebi que estava sofrendo um infarto, mas não me apavorei de imediato. Acomodei-me na cama, sentado e apoiado nos travesseiros, procurando me acalmar e respirar compassadamente. Mas a dor aumentava e minha respiração se tornava difícil. Lentamente, me arrastei para fora da cama, vasculhei a mochila e peguei meu celular. Com grande dificuldade tentei encontrar o telefone de um colega que pudesse me socorrer. Não conseguindo falar, mandei uma mensagem: "Acho que estou tendo um infarto. Preciso de ajuda"! Durante uma hora me contorci na cama, mas nenhuma posição aliviava aquela dor imensa, insuportável. Porém ninguém me socorreu.

Lembrei-me do síndico do condomínio. Não poderia gritar, que a voz não saía do meu peito. Mas tinha o telefone dele e mandei a mesma mensagem. Em menos de três minutos ouvi o barulho de chave na porta e alguém entrou, subiu as escadas, verificou minha situação e saiu correndo. Voltou em poucos minutos, que pareciam horas, acompanhado de três vizinhos. Fui levado escada abaixo e colocado em um carro. Eu não enxergava as pessoas, não conseguia falar nenhuma frase inteligível, e estava quase desmaiando. O carro saiu em desabalada carreira morro abaixo.

Pela manhã, ainda no hospital, o médico me disse que eu estava estabilizado e necessitava ser removido para outra cidade, para um hospital especializado em cirurgia cardíaca. Ele se foi e eu fui transferido para um quarto, acompanhado da minha colega, que havia chegado ao hospital no meio da noite. Enquanto eu esperava por uma transferência, um plano de remoção se arquitetava entre minha colega, minha mulher e minhas filhas, a 1.300 km dali. O dia transcorreu lentamente... nada acontecia ao meu redor. Embora a dor tivesse desaparecido, sentia que minha situação era gravíssima e eu estava perdendo horas decisivas para ser socorrido e tratado adequadamente. Mas nada poderia fazer. Tudo dependia dessas providências. Tratava-se de uma operação logística complexa e onerosa. A noite chegou, e, com ela, a notícia de que eu seria transportado por uma UTI aérea.

Minha filha chegou e já me encontrou na pista do aeroporto, para onde eu fora levado por outra ambulância, desta vez sem as cenas de horror que eu protagonizara na noite anterior. Vinte e quatro horas em que minha vida estivera por um fio, desperdiçada em um local cuja beleza se esvaíra diante de meu drama pessoal. Colocaram-me na aeronave, onde um médico e um enfermeiro me aguardavam. Fui acomodado da maneira que foi possível naquele mini-avião. Levantamos voo e a viagem transcorreu para mim como um hiato no tempo de minha existência. Não dormi nem um instante. Meus pensamentos se sucediam sem uma ordem razoável e coerente, mesclando o passado de aventuras e um futuro incerto ou improvável, com limitações que eu sempre temera delas me tornar vítima e escravo.

Mas o amor e o carinho dessa família maravilhosa me permitiram superar esses fatos inenarráveis e sinalizar para uma nova vida que, se não teria as emoções intensas das montanhas, das florestas, dos rios e dos mares que conquistei, teria o tempo de reflexão de que necessitava para colocar ordem nas coisas que vivi. E assim permaneço presente nesse planeta, sem nenhum brilho pessoal, mas com a eternidade do tempo que me resta para encerrar minha missão. Sou grato, é claro, por todos aqueles que me querem bem, que me têm carinho, que a mim dedicam um amor que nunca tivera tão presente nos intensos anos que passei afrontando inimigos inexistentes e me defrontando com meus próprios demônios que julguei ter conquistado. Restam-me as memórias e as fotos desse passado que, se não foi glorioso como imaginara, teve momentos alucinantes de energia, vibração, emoções e prazer.

Afinal, não é apenas para isso que vivemos? Portanto, como disse o poeta, "confesso que vivi"!

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