domingo, 14 de setembro de 2014

"Operários em Construção"


OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
Vinícius de Moraes

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo,
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer o tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente,
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão,
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, Cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção,
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:


Notou que a sua marmita
Era o prato do patrão
Que a sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que o seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que a sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
-"Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado,
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção,
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
E o operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca da sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! -disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem pelo chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão, porém, que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
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De fato, nós, "operários em construção", não temos mais o poder de mudar nosso "patrão", pois, para isso, seria necessário mudar o processo de subserviência de nossos irmãos operários que, aceitando as migalhas do capitalismo através do assistencialismo de estado, perdem sua autonomia de decidir e mudar sua própria vida. Vinícius fala de outra época (1956), nem tão distante, mas na qual as forças dos partidos políticos não estavam tão imbricadas com forças tão antagônicas, parecendo que tudo não passa de mera ilusão, que nada é diferente, e que não importa quem, não importa como, esse mundo irá permanecer sempre o mesmo. Na década de meu nascimento (1950) o Brasil era um país agrícola, e não havia o agronegócio; a agricultura era uma atividade nobre, e os bancos ofereciam linhas de crédito especiais para os agricultores, através de uma carteira agrícola. Hoje, os operários não estão mais nas lavouras, pois foram substituídos por máquinas; eles também não estão nas fábricas, que foram automatizadas; tampouco estão nas construções, onde o ritmo é frenético, e blocos de pré-moldados servem de peças a serem montadas como um lego gigante. Também a música de Chico Buarque (Construção) já não nos diz respeito.

O que há, então, senão empresas virtuais, empresas de serviços, instituições governamentais onde os trabalhadores são chamados de "servidores", termo medieval e anacrônico, como os serviços prestados à população? Existem os empresários, os banqueiros, os latifundiários... porém, nem mesmo eles são igualmente, os mesmos. Seu escritório está nas bolsas de valores; seus empregados estão nos computadores; seu dinheiro, em um paraíso fiscal, assim como o dos políticos "tiriricas" que riem de nós, pobres palhaços. Nossos inimigos não são mais os patrões, pois até mesmo eles vivem da carniça que apodrece nas salas do Poder de Brasília. O Capital mudou de nome, de negócio e de objetivo. Ninguém trabalha mais para edificar uma Nação, mas para conquistar sua posição, não importa como, não importa com quem, não importa, sequer, quantos serão necessários "desconstruir" para se conseguir o que se quer.

Não somos mais "operários em construção", pois não há mais operários. Não nas dimensões que tinham quando Vinícius escreveu sua ode aos trabalhadores. Aliás, mesmo os "trabalhadores" já usam gravata e convivem nos gabinetes do Palácio do Planalto, com a desenvoltura dos que eram, por eles, condenados e acusados de usurpadores do povo. Já não enxergamos mais, nas obras que aí estão, os frutos de nossas mãos calejadas, de nosso trabalho árduo, porque já não há mais calos nem suor nos trabalhos de gabinete. E a monotonia dos campos de soja substituíram a beleza das lavouras diversificadas dos tempos de Vinícius. Milhões de cabeças de gado caminham pelos prados igualmente monótonos da brachiaria transgênica dos latifúndios das "plantations". E a fumaça das cidades não sai mais das chaminés de fábricas, mas dos encanamentos dos veículos paralisados nas infindáveis filas dos congestionamentos urbanos.

Somos bilhões de seres, três vezes mais do que quando Vinícius teve sua inspiração e produziu seu texto iluminado. O marxismo já não nos entusisma, nem nos faz lutar contra a opressão de nossos patrões endinheirados. Afinal, qualquer um de nós pode se desfazer de seus valores, de seus princípios, de sua ética incorruptível, alistar-se em um partido político dos trabalhadores, e eleger-se membro das confrarias da corrupção e do enriquecimento fácil. Em breve, seremos dez bilhões de seres humanos, andando sem rumo em um mundo desprovido de belezas, intoxicado pelos gases asfixiantes produzidos pela ausência das paisagens que tanto nos encantaram. Não teremos água para saciar nossa sede, mas algum cientista haverá de encontrar uma saída para isso também. Não entenderemos, nem tentaremos descobrir a razão do existir, que tanto incomodaram os filósofos da antiguidade. Mas não haverá, também, filósofos, nem poetas, nem sonhadores, pois esses seres humanos terão sido banidos do convívio da sociedade; serão, tão-somente, marginais.

E aquele operário, que vislumbrava o mundo à sua volta, compreendendo-o como sendo a sua própria obra, terá saltado dos andaimes, espatifando-se no vazio dos pátios das construções. Já não haverá, também, lugar para ele. Vivemos o fim das ideologias e dos valores éticos. Por isso, somente o pragmatismo imediatista se permitirá existir, e aqueles que o afrontarem, ainda que só em pensamentos, terá sido condenado a não mais existir. Nem mesmo delatores haverá, então, pois quem se atreverá a contrariar a lógica das construções sem operários? Não seremos, sequer, "operários em construção"...

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