quinta-feira, 27 de junho de 2013

O gigante sonha que acordou e pode ser golpeado (ou “Como a Globo virou o jogo”)

Na novela das dezoito horas, Flor do Caribe, a Aeronáutica é mitificada; e adolescentes que sempre dormiram na aula de História (ou não tiveram acesso à educação) tatuam o emblema da cobra fumando em seus bracinhos magrelos. Os militares também apareceram como redentores da sociedade na recém-encerrada novela, Salve Jorge, das 21 horas. Em Salve Jorge, o exército, de modo especial a cavalaria, foi elevado a um patamar inédito no imaginário popular. Foi uma propaganda do tipo “Aliste-se Já!” que durou meses. 

Um “golpe branco” (ou mais escuro se for preciso), como plano de contenção vem sendo preparado pelo alto escalão do Exército em parceria com os ruralistas e corporações (dos ramos de energia, comunicação, mineração e armas) conforme atestam, como provas históricas, o artigo da senadora Kátia Abreu (PSD), de outubro de 2011, intitulado “Constituinte em tempos de paz” e o discurso do general Enzo no dia do exército (19 de Abril) de 2012. O general Enzo dizia estar atento à conjuntura e antevendo o que estaria por vir: “Visualizo tempos desafiadores. O Brasil cada vez mais precisa do seu Exército com capacidade de dissuasão e pronta resposta”, disse há pouco mais de um ano.

Antes disso, irritada com a demora para da tramitação do novo Código (anti)Florestal, a senadora Kátia Abreu escrevia considerar que "Há muita coisa na Constituição que se tornou um obstáculo a uma gestão racional do Estado e ao equilíbrio entre direitos e deveres". Segundo ela "As ideias dominantes sobre o funcionamento do Estado, da economia e da sociedade no Brasil de 1988 já não existem mais, não servem mais.(...), precisamos de um Estado muito diferente do que foi cristalizado pelas ideias da Constituição brasileira.".

Por que esse grupo planejaria uma ruptura institucional se tais grupos já se encontram no poder, controlando o Senado, determinando a política de terra, energia e até as intervenções militares em terras indígenas? As eleições de 2010 já haviam demonstrado a nascente influência das redes sociais no processo político brasileiro. Além disso, motivados pela revolta engasgada com as injustiças sociais e a violência policial, jovens do Norte da África e Oriente Médio se mostravam capazes de organizar processos de revolução e insurgência de uma hora para outra. O exemplo poderia se espalhar, como se espalhou, para além do mundo árabe, e a América Latina, com suas mazelas históricas, sempre foi campo fértil para corações rebeldes. É preciso lembrar que o principal fator deflagrador da Meia Revolução Egípcia de 2011 foi a extrema violência e injustiça das ações policiais contra os cidadãos, problema que no Brasil também é endêmico.

É preciso que levemos em conta os planos expansionistas da poderosa bancada ruralista de Kátia Abreu, que sonhava com a aprovação do novo Código Florestal Brasileiro ainda em 2011, o que sabiam que não poderiam fazer sem oposição. Mesmo que a comunidade científica brasileira tenha alertado e tenha desagradado parte da população, a pequena parte que de alguma forma acompanhou os debates sobre esse tema, o Código foi aprovado sem que esse fosse o estopim para um levante civil contra o sistema político falsamente representativo, onde a classe política representa apenas aos seus interesses e aos de seus patrocinadores.

O Brasil perdeu, numa emenda só, 22 milhões de hectares de mata nativa, o equivalente ao estado do Paraná, ou 22 milhões de campos de futebol. Com as novas regras, pessoas que já eram extremamente ricas e donas de áreas enormes, poderão desmatar ainda mais perto de beiras de rios, encostas e etc., prejudicando a todos, já que assim perderemos consequentemente boa parte de nossas nascentes de água, de nossa biodiversidade e da capacidade do planeta de produzir oxigênio, e limpar o ar que a civilização industrial polui. Se uma chuva de bombas nucleares lançado por alguma potência estrangeira tivesse causado tamanho impacto concentrado e de uma só vez, talvez a população do Brasil e do mundo tivesse se chocado e se levantado de fato contra alguém que fizesse uma barbaridade dessas. No entanto, a alienação causada pelo estilo de vida urbano e a televisão, que distrai o povo com outros assuntos menos importantes, foram mais do que suficientes para apaziguar a população.

Devemos lembrar que as pessoas ainda não haviam chegado ao seu limite de endividamento e a febre do consumo era acelerada por desonerações, pequena queda nos juros e perspectiva de geração de emprego devido às obras dos eventos esportivos anunciados. Enquanto podiam trocar de celular e baixar os hits das novelas para lhes servir de despertador, as pessoas não se empolgaram em ir para as ruas pela água que vai faltar a seus filhos.

Mas a qualquer momento a bomba das revoltas populares poderia estourar e por isso Katia Abreu já exigia sua “Constituinte em tempos de paz” e general Enzo antevia “tempos desafiadores”. Ao que parece, esses dois setores da sociedade, Exército e latifundiários, já tem pelo menos desde 2011 um projeto de Estado pronto para caso fosse deflagrada uma crise institucional por qualquer razão que fosse. Trata-se de uma estratégia antiga no Brasil, o poder de fato promover quantas mudanças institucionais necessárias no Estado aparente para manter a ordem social e política como está. Tal prática encontra diversos exemplos históricos, como a própria proclamação de Independência e a fundação da República, conforme analisei em meu ensaio ‘Uma revolução ou reforminha para chamar de sua” *.
O poder econômico tomou 100% do controle do processo político brasileiro, alienando a sociedade de esfera de decisões, conforme bem analisa o Manifesto OcupaSampa (outubro de 2011), marco na história dos movimentos autônomos (redigido coletivamente debaixo do viaduto do chá na Zona Autônoma do levante satyagrahi que durou mais de 40 dias e chegou a reunir mais de mil pessoas no Vale do Anhangabaú).

O próprio Sarney, o coronel eletrônico, presidia a comissão de reforma política que houve no Congresso no mesmo ano de 2011. Sim, o mesmo ex-aliado da ditadura que presidiu o Brasil durante o processo conhecido como “Abertura Democrática” nos anos 80.

Para ser claro e direto: Um projeto de reforma institucional do Estado, que não responde aos anseios democráticos da população, está sendo preparado há pelo menos dois anos pelas classes dominantes. Os discursos da Senadora, dos militares e das novelas não deixam dúvidas para isso.

Televisão Arma de Guerra

E a Globo, onde entra? Entra onde sempre esteve. O jornal O Globo foi decisivo para que o golpe de 64 acontecesse. Um ano após a instalação do regime de exceção a Rede Globo de Televisão era fundada pelos militares e pelo jornalista Roberto Marinho, o “Cidadão Kane brasileiro”. Em pouco tempo, cobriria praticamente todo o território nacional, chegando a mais de 99% dos lares brasileiros. O objetivo era ser uma espécie de porta-voz do regime, exaltando os projetos de desenvolvimento dos militares (por mais superfaturados e absurdos que fossem) e omitindo tanto a corrupção quanto as mazelas sociais do país. A função da Globo sempre foi dissimular, enganar, manipular a população em favor das classes dominantes, que controlavam o governo por meio da junta militar.

Para se ter uma ideia da atuação da Globo, em 1984, quando a sociedade civil começava a se organizar e sair às ruas para pedir eleições diretas e livres, o Jornal Nacional exibiu cenas do mega-comício pelas Diretas Já (no Vale do Anhangabau) dizendo se tratar de um evento em comemoração ao aniversário de São Paulo.

Com o boicote da televisão, numa época onde ainda não existia internet nem redes sociais, o movimento pelas Diretas não se viralizou tanto e a campanha acabou não saindo vitoriosa. O primeiro presidente civil em décadas viria a ser eleito indiretamente pelo congresso. Esse presidente, Tancredo Neves, não chegaria a assumir, já que após uma entrevista com uma famosa jornalista da Globo, caiu doente inexplicavelmente e veio a morrer pouco depois. Quem assumiu foi o oligarca maranhense José Sarney, velho aliado da Ditadura (e de quem estava por trás).

Sarney comandou o país durante a transição e a Assembleia Constituinte de 88, durante esse tempo tratou de estabelecer as bases de uma nova forma de dominação de modo a manter o poder dessas oligarquias mesmo com eleições presidenciais. As concessões de TV foram a fórmula precisa para isso conforme analisei também no quarto capítulo do meu livro (Capitalismo: Religião Global – CC – 2013). 

“Como os minérios do subsolo e rios, o espectro eletromagnético, por onde passam as ondas AM, FM, UHF e VHF, é um recurso natural finito. Finito, pois a quantidade de faixas de onda, que atravessam o espaço, é limitada. A distribuição do direito de exploração, concessão pública, desse recurso natural, o espectro eletromagnético, no entanto, segue critérios políticos.

Rádio e TV são serviços públicos. Ninguém pode ser “dono” de uma faixa do espectro eletromagnético, pois ele é de todo mundo, pois passa por todo mundo. Através de nossas células correm ondas eletromagnéticas, mesmo que não estejamos vendo, com as ondas das novelas, jogos de futebol e toda a tele-evangelização possível.

Tecnicamente, Globo, SBT, Record e Bandeirantes estão prestando um serviço público. O problema é que as concessões são sempre renovadas e não é exigido praticamente nada dessas emissoras em contrapartida. Nada além de "sustentação política”.

Ao longo das últimas décadas, a media televisiva tem feito seu papel. Existe, no entanto, um distanciamento enorme entre a realidade e a realidade MEDIAda. Isso acabou ficando claro com as manifestações, quando se contrastou claramente a voz da TV que diz que no Brasil vai tudo bem e a voz das ruas que sabe que tudo vai mal.

Quando se dita uma suposta “Realidade Nacional” é possível mentir sobre todo o resto. Só quem vive no “faroeste” do Pará (e olhe lá) sabe dos conflitos no Pará; só quem vive os conflitos nas periferias de São Paulo sabe que há uma guerra civil na madrugada há muito tempo. A TV diz para as aldeias da floresta e para as quebradas das megalópolis que o Brasil vai bem, que cada um está sozinho nas suas angustias. O Brasil é um império televisivo.

O jornal noturno da TV Bandeirantes, por exemplo, trata latifundiários que grilaram terras indígenas como vítimas dos índios. Uma reportagem exibida dias antes das explosões das manifestações nessa rede que se tornou a porta-voz do agronegócio começava com um close nos olhos do fazendeiro chorando, e não mostrava ou ouvia um índio sequer. Os índios eram descritos como uma ameaça à “economia do país”. Tudo uma grande mentira, os índios são responsáveis pela manutenção e proteção da biodiversidade, além de deterem o conhecimento ancestral sobre as plantas que podem salvar muitas e muitas vidas por aqui e pelo mundo sem necessidade de dependermos de multinacionais estrangeiras. Se fosse dado o devido respeito e pesquisa para fins públicos universais, só a medicina indígena poderia gerar remédios para tantos males que fariam decair enormemente inclusive nossos gastos com saúde. No Peru, por exemplo, clínicas em que xamãs trabalham junto com médicos têm atingido os maiores índices de recuperação de dependentes químicos viciados em crack e cocaína. Enquanto no Brasil não temos tratamento para essas pessoas e gastamos fortunas com polícia e balas contra elas, os “nóias”, os leprosos de nosso tempo.

Quem perde com as retomadas feitas pelos índios são os latifundiários, os grandes proprietários de terra, que não produzem alimento, mas apenas commodities para serem exportadas para a indústria, seja da China ou dos EUA, como etanol e óleo de soja. Enquanto isso, o preço dos alimentos dispara pois as vastas planícies de dimensões continentais continua pertencendo às mesmas famiglias que também concentram torres de TV e cadeiras no Senado.

A TV e o levante popular
Torcedoras exibem cartaz distribuído pela Globo. Emissora convocou telespectadores a aderirem a protestos do dia seguinte defendendo a Copa no Brasil

Como dizia o músico Gil Scott Heron, “A Revolução não será televisionada”. Uma outra frase, essa de Gandhi sobre a revolução da não-violência também deve ser lembrada: “Primeiro te ignoram, depois te ridicularizam, logo te atacam, e então você vence”. Esse foi o roteiro exato da luta pela revogação do aumento das passagens. A mídia e o estado agiram assim. Arnaldo Jabor passou um papelão ao atacar o Movimento Passe Livre em um telejornal da Globo e pouco depois se ver obrigado a se retratar em sua crônica radiofônica.

Quando os repórteres e fotógrafos da mídia impressa voltaram para as redações com olhos roxos e testas sangrando após a violenta e inconstitucional repressão policial à quinta manifestação contra o aumento do transporte, a mídia não pode mais se omitir nem ridicularizar. A Força da Verdade** venceu e conseguiu que governos de diversas cidades e estados revogassem o aumento das passagens, inclusive em cidades onde não haviam ocorrido, ainda, manifestações.

Essas vitórias populares inspiraram uma série de outros protestos, por diversas coisas, que encontraram, sim, um ponto comum, ou ao menos um alvo simbólico: a Copa do Mundo. Esse era o inicio do despertar para a realidade de que a Indústria do Espetáculo tem uma forte importância na manutenção da ordem política social. Isso fica claro para muitos que não encontram serviços públicos de qualidade, como um hospital num momento de emergência, enquanto essa gente vê o governo gastar bilhões com a construção das arenas da Copa do Mundo e Olimpíadas. Isso é ainda mais claro para aquele que é expulso de suas casas por soldados de seu próprio Estado, que derruba seu bairro para a construção de hotéis ou vias de acesso aos estádios.

A Globo e a Fifa sabiam que ia chegar nela. Com o descredito da Globo, todo o resto apareceria. Que faz então o grupo Roberto Marinho? Se não pode vencê-los, junte-se a eles. A Globo passa a “apoiar” os protestos, mas tenta direcioná-lo, usando a Copa do Mundo a seu favor, para criar uma agenda nacionalista e canalizar a fúria popular para apenas a classe política. Por classe política, entenda-se os profissionais que defendem os interesses de quem lhes paga mais.

O objetivo era impedir que os protestos chegassem a questionar a estrutura agrária e também os latifúndios eletromagnéticos (as grandes concentrações de concessões de rádio e TV na mão de um pequeno grupo privado). 

No dia do primeiro jogo do Brasil na Copa das Confederações, enquanto manifestantes que pediam moradia, fim da violência policial, cancelamento da Copa apanhavam de soldados do lado de fora dos estádios, a câmera focalizava torcedores de classe media alta (os únicos que podem comprar ingressos FIFA) com cartazes do tipo: “Esse protesto é contra a corrupção e não contra a seleção” E divulgavam a hashtag #OGiganteAcordou. A tag conduzia a diversos conteúdos nacionalistas com um discurso contra a corrupção, de modo especial aos escândalos que atingem o governo federal.

Nos dias seguintes as televisões passam a mostrar o caótico caldeirão de insatisfação que toma as ruas como divididos em dois grupos: os “cívicos”, que cantam o hino nacional e apoiam a seleção, e do outro lado os vândalos.

A ênfase maior é nos vândalos. Eles ganham mais espaço nos noticiários da TV aberta com alguns objetivos muito específicos: justificar a ação da polícia, criminalizar as manifestações que questionem a agenda do grupo dominante.

A estratégia da classe dominante agora é criar instabilidade institucional, dividir o povo o quanto puder, identificar eventuais líderes (para coopta-los ou elimina-los via prisão, morte ou qualquer outro meio) e, garantir que a ruptura institucional não atinja o âmago da origem de nossos problemas, nossa estrutura social, mais do que nossa própria ordem jurídica que apenas a legitima. 

O fim da concentração dos meios de produção, seja de bens materiais seja de bens simbólicos, deve ser o foco desse levante popular, que, embora não seja anarquista, é anárquico e só por isso tem também alcançado vitórias.

O Gigante pensa que acordou. O que quer que venha a ser feito precisará de legitimação popular, o que nos coloca no meio de uma verdadeira “guerra simbólica”, como previu Hakin Bey. 


Guerra simbólica: BM dispersa manifestantes que atacaram mascote da Copa financiado pela Coca-Cola em Poa

A disputa política brasileira agora voltou às ruas, às ágoras. É uma disputa de símbolos e ideias. “A luta é pelo sentido das coisas”, já alerta há muito tempo o cineasta carioca Pedro Rios Leão, deletado do Facebook há pouco tempo. E se há uma guerra simbólica envolvida nessa luta de classes dos muito muito ricos contra todo o resto da população, os televisores são canhões apontados para as cabeças desses 99% da população. Entretanto se os verdadeiros gigantes da classe dominante possuem esse canhão, que propaga militarismo já há algum tempo; do outro lado estão meninos com disposição davídica, com suas “fundas” de blogs, fanzines, discursos no busão, latas de spray, rádios piratas, redes sociais, cartazes, aulas públicas, bandas independentes, rodas de discussão em Centros Acadêmicos e pistas de skate. Uma geração disposta a determinar seus próprios caminhos e interagir com a realidade do mundo real.

Essa é, no entanto, uma geração sem muita referência, e muito desconhecimento sobre sua própria História e Geografia (o sucateamento proposital da educação das ciências humanas fez isso com eles; eles não têm culpa). Existem muitos jovens indignados nas ruas, com uma justa fome e sede de justiça, mas que podem ser facilmente cooptados por grupos e ideologias da extrema direita, como os carecas fascistóides que espancavam qualquer um que estivesse trajando vermelho nas últimas marchas na Avenida Paulista.

Alguns passos da Guerra Simbólica

Muitos lances curiosos têm acontecido nessa disputa politica cheia de facções não assumidas. E muita coisa ainda está por vir. Alguns lances por vir são:

- Não sabemos ainda como se postarão os pastores das maiores igrejas evangélicas do país.

- Não sabemos o que o papa vai fazer por aqui.

-Não sabemos se alguns editais para gravar CDs ou indicações para secretarias da Cultura vão fazer o Fora do Eixo pender pro governismo. Essa rede de coletivos de cultura independente (?) pode ajudar a ampliar o som da contracultura e participar ativamente inclusive em termos de proposição estática anti-sistema. Ou então pode recuar como fez ao não apoiar os acampamentos de 15 de Outubro de 2011. Por razões desconhecidas, inclusive por boa parte de sua própria base, o FDE ora está com os movimentos sociais (como na Marcha da Liberdade), ora está com o governo a qualquer custo (como no vergonhoso caso em que chancelou a Rio +20). Se o FDE segue no processo revolucionário com os movimentos autônomos, atuando nessa guerra simbólica, ou se aceitará qualquer emendazinha de consolação do Sistema é um mistério. Isso pode definir inclusive o futuro da música brasileira.

- E movimentos sociais do campo, como ficam? Haverá ocupações autônomas sem lideranças que possam ser cooptadas como ocorrem nos movimentos tradicionais?

-O envio de tropas, “com nosso dinheiro”, contra os índios mundurucu causará nos brasileiros o que o Vietnã causou na juventude estadunidense nos anos 60?

- Os hackerativistas estenderão suas ações para a ocupação de sinais de rádio e TV ou continuarão apenas pichando páginas de internet?

- Essa gente que propõe intervenção militar e se mistura às marchas nas ruas vai convencer alguém?

Na guerra simbólica. A juventude tucana tenta tomar dos anarquistas o símbolo da máscara de Guy Fawkes, até mesmo um vídeo fake dos Anonymous ganhou a rede pedindo que o povo ignorasse questões de gênero e liberdade religiosa e direitos civis de minorias, se focando em “5 causas”, como a cassação de Renan Calheiros. Tal vídeo propunha não o cancelamento da Copa, nem o boicote de seus patrocinadores, mas apenas que se investigassem os gastos, de uma maneira bastante vaga.

Outro lance interessante foi Lula mandar sua base de apoio vestir vermelho e aderir às manifestações de rua. Ele não contava com o fato de que carecas da extrema direita chegassem antes, de verde e amarelo como a Globo mandou, agredindo pessoas de vermelho nas manifestações que até então não haviam registrado qualquer conflito entre manifestantes.

Seja o que for, o processo político está apenas começando. E a disputa não deve permanecer apenas no campo simbólico, mas esse é o campo primordial. O levante da juventude pode nos levar a um país melhor, mais justo e livre; mas não podemos nos esquecer que corremos, sim, o risco de um rebote vindo da Direita. As reformas que a classe dominante almeja são para manter seu poder de fato, ainda que isso implique em tirar direitos e aumentar a repressão em vez de aproximar o povo do centro de decisões.

Sim, o levante popular tem que ser também contra os latifúndios eletromagnéticos, contra o monopólio do discurso, contra a indústria do espetáculo (que distrai e manipula). Os cartazes verde e amarelo mostrados pela Globo no dia do jogo não me representam. Eu acho que o gigante continua dormindo e apenas sonha que acordou, se não perceber de uma vez que a disputa em andamento é muito maior.

Leandro Cruz é jornalista e historiador, editor do blog Viagem no Tempo (www.viagemnotempo.com.br ) autor do livro "Capitalismo: Religião Global" disponivel para download gratuito no link http://www.sendspace.com/file/b32xtk

Es tempo de vivir sin miedo...

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Antropólogos brasileiros divulgam manifesto sobre demarcação de terras indígenas

Fonte: Brasil de Fato - 04/06/2013

De que tratam e para quem servem os tais caminhos unilaterais de "progresso” e "desenvolvimento” de uma nação, se eles não são acompanhados, passo a passo, por seu desenvolvimento humano e do respeito à sua Constituição?

De maneira flagrantemente parcial, a mídia brasileira tem criminalizado a regularização fundiária de terras habitadas por populações indígenas no país. Para resumir os alarmantes argumentos, a ideia mais comum veiculada é a de que esses processos são artifícios fraudulentos, que transformariam "terras produtivas” e de "gente que trabalha”, em "reservas indígenas”. Para bom entendedor, meia palavra basta, como é de domínio popular.

O que se anuncia é que terras "produtivas” serão tornadas "improdutivas” e, paralelamente a isso, "gente que trabalha” será como que "substituída” por "gente que não trabalha”, isto é, "índios” – como se os índios não trabalhassem ou produzissem. Esta metamorfose perversa é atribuída, em muitos casos, a um suposto concerto criminoso de forças nacionais e internacionais que atuariam em proveito próprio, tendo pouca ou nenhuma relação com os legítimos ocupantes das terras.

Não é de hoje que este tipo de conjunção suspeita de ideias aparece na opinião pública ou mesmo em documentos e outras manifestações formais relacionados a trâmites legais ou matérias igualmente cruciais à existência das populações indígenas. Estas mesmas ideias vêm se repetindo cronicamente no tempo até os nossos dias, ao longo das muitas ondas desenvolvimentistas de colonização que marcam a história do nosso país desde os tempos da coroa portuguesa.

E sim. É sempre preciso trazer à luz o fato de que este arcabouço ideológico cauciona, insidiosamente, ações e disposições tanto do Estado brasileiro quanto de agentes privados na direção do extermínio, submissão e esbulho daqueles povos.

Lamentavelmente, estamos muito longe de poder acalentar a esperança de lançar este fatídico ideário, repleto de trágicos fatos que clamam por erradicação, às trevas da memória nacional. Em tempos de rápida repercussão dos discursos através de mídias eletrônicas, há mesmo a impressão de que este ideário estaria se multiplicando em incontáveis desdobramentos e manifestações. De conversas informais em redes sociais a artigos de jornais, é em documentos como Relatórios de Impacto Ambiental de grandes empreendimentos econômicos ou em célebres contestações jurídicas aos processos de regularização fundiária que ele aparece de forma mais perniciosa. Trata-se, no entanto, bem mais de uma imensa cortina de fumaça comunicacional providencialmente interposta entre a população e seus os direitos mais fundamentais, distorcendo e obscurecendo o funcionamento dos principais instrumentos constitucionais de resguardo desses direitos.

Como agravante central desta coleção de equívocos e distorções, está a gravíssima acusação ética de que os antropólogos estariam supostamente fraudando o estudo antropológico de identificação e delimitação, conforme ele é juridicamente definido e regulamentado. É legítimo que o leitor se pergunte sobre o que é exatamente isso. Não há qualquer registro na imprensa que, afinal, lance verdadeira luz sobre o que é e como se faz, enfim, a regularização de uma Terra Indígena no Brasil. O que é, por que e como acontece, quem realmente faz, tudo isso permanece nas trevas e ignorado pelo grande público ou mesmo por especialistas de outras áreas. Tudo converge em uma situação que tem como resultado o total desconhecimento deste instrumento técnico-jurídico e sua função primordial neste tipo de regularização, representando um terreno fértil para as especulações mais estapafúrdias.

Respostas adequadas a tais perguntas permanecem ausentes de manchetes rápidas, notícias ou editoriais dedicados a tratar – e quase sempre deslegitimar – o assunto. No entanto, estas respostas estariam bem mais próximas a todos se a Constituição Federal, como expressão e instrumento primordial de democracia e cidadania, não viesse sendo completamente ignorada, senão sistematicamente desfigurada, por meios de comunicação e outras frentes que atingem o grande público. Se alguns o fazem quase involuntariamente, por mero desinteresse ou desinformação, há os que o fazem deliberadamente, interessados que estão em dar continuidade aos crimes efetivos raramente apurados, à exploração e à desigualdade, contra os quais a carta magna se propõe a ser valioso instrumento de representação coletiva.

Constituição Federal: A demarcação de toda e qualquer terra indígena, como também todas as suas fases e ações, é devidamente fundamentada e regida pela Constituição Federal, pela Lei nº. 6001 de 1973, o chamado "Estatuto do Índio”, e pelo Decreto 1775 de 1996. Ela é um longo e sério processo que envolve etapas diferenciadas, uma equipe multidisciplinar de profissionais e instâncias diversas. Os antropólogos são aqueles legalmente responsáveis por compilar e analisar os detalhados estudos de um grupo interdisciplinar e que inclui também funcionários de órgãos federais, estaduais e até municipais.

O grande equívoco: A gente lê ou ouve com frequência que os antropólogos são contratados para dizer se uma terra é indígena ou não é, ou mesmo se um grupo de pessoas é ou não indígena. Isto demonstra que, mais uma vez, há muitas "trevas” e completo desconhecimento não apenas sobre a natureza desse estudo como do processo de regularização fundiária como um todo. É importante esclarecer que o trabalho do antropólogo na demarcação de uma terra indígena não é, de forma alguma, pericial ou resultará em um laudo, como normalmente se tem veiculado e mesmo como constam de alguns processos jurídicos. Há uma obscurecedora e talvez proposital confusão nos discursos veiculados pelos meios de comunicação entre os conceitos de laudo e de relatório de identificação e delimitação.

Fala-se muito sobre a necessidade jurídico-legal do Estado em definir e fixar sujeitos de direito e a incompatibilidade disto com o atributo dinâmico, fugidio, mas também prioritariamente endógeno da identidade étnica. Entretanto, é importante notar que, mesmo deste ponto de vista, as próprias disposições constitucionais são por si mesmas profundamente antropológicas, no sentido em que estabelecem que ninguém, além do próprio grupo, é capaz de responder a estas questões postas pelo Estado. E ele o faz dentro determinado espaço, indissociável à singularidade de sua existência enquanto grupo, como dita a Constituição Federal, em seu artigo 231, caput e Parágrafo 1º, nos termos de um território cultural, conforme já foi definido pela procuradora Deborah Duprat. A medida diferencial da territorialidade e identidade de um grupo indígena está, portanto, embutida no próprio texto constitucional.

Mas os processos de regularização fundiária não tratam fundamentalmente disso, ao contrário do que se poderia supor a partir das informações acessíveis ao público. Absolutamente. Quando estes processos acontecem, isto é expressão direta dos direitos daquele povo sobre o espaço que ocupa ou, em muitos casos, do espaço do qual ele foi sistematicamente impedido de ocupar de forma plena, tendo sido na maior parte das vezes pilhado e usurpado. Quando se chega a este estado avançado de reivindicação formal daquilo que de direito já o pertence, o processo de regularização fundiária é formalmente inaugurado através de uma portaria da Fundação Nacional do Índio, publicada no Diário Oficial da União. Neste sentido, e nos termos do Artigo 1° do Decreto 1775 de 1996, o órgão administrativamente responsável pela formalização da iniciativa e orientação da regularização, rigorosamente submetidas aos termos constitucionais, é a FUNAI. O órgão, mais do que responsável pela assistência ao índio é, neste caso, um representante do Estado brasileiro e de suas diretrizes fundamentais, zelando pela adequada aplicação da Constituição, em todas as etapas da regularização.

Da Portaria publicada, e conforme as disposições constitucionais, constam a natureza do estudo, o nome e a instituição de cada componente do grupo interdisciplinar, o município, a etnia e as Terras Indígenas que serão estudadas em tal ou qual período.

Este grupo produzirá diferentes estudos integrados e coordenados por um antropólogo, a partir daquela publicação, denominado de antropólogo-coordenador, conforme também determina a Constituição Federal. É facultativa a presença de outros antropólogos, que serão caracterizados como "colaboradores”, de modo que não há qualquer exigência constitucional neste sentido, embora seja prática complementar da FUNAI em muitos casos.

Deste estudo resultará, conforme as prerrogativas constitucionais, o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de uma determinada Terra Indígena. Este é um trabalho extenso e complexo (i.e., circunstanciado), elaborado pelo antropólogo-coordenador a partir dos subsídios produzidos pelo Grupo Técnico em conjunto e com a participação do grupo indígena em questão, conforme as prerrogativas constitucionais. Também são fundamentais os estudos de campo realizados por ele, como aqueles de gabinete, o que inclui uma conscienciosa revisão crítica de fontes históricas e documentais, tanto quanto de informações antropológicas apuradas diretamente ou em trabalhos disponíveis sobre o grupo em questão. Uma vez tecnicamente aprovado, o Relatório terá seu resumo publicado no Diário Oficial da União e também dos estados envolvidos. Conforme as disposições legais no Decreto 1775/96, as partes que por ventura se vejam afetadas poderão apresentar sua contestação ao órgão indigenista. O documento original será também colocado à disposição daqueles que pretenderem contestá-lo.

Considerando que o ocupante que possua títulos ou qualquer outra forma de comprovação documental de sua ocupação poderá, prontamente, apresentá-los ao órgão federal, lhes são disponibilizados para fazê-lo, desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação do citado resumo no Diário Oficial da União. Isto, em teoria, comprovará que tais ocupações foram feitas de boa-fé. E, uma vez constatada a boa-fé das ocupações, as determinações constitucionais serão aplicadas, tais quais a indenização por suas benfeitorias e, para os pequenos agricultores, a prioridade no reassentamento em outros locais, se este for seu desejo.

À Luz da Constituição: Nada há de criminoso ou secreto neste processo. Ele transcorre no mesmo espaço de circunspecção e cautela requerido por trâmites científicos, ainda mais quando se lida com matérias delicadas, como fraudes com vistas a expropriações territoriais, semiescravidão, esbulho de recursos e gentes. Em muitos casos, a rigorosa pesquisa documental demonstra o vício de grande parte de títulos definitivos incidentes sobre Terras Indígenas, quando analisados em sua genealogia primária. Mas isto é não mais do que um agravante, porque a orientação primeira de todo trabalho de delimitação é a correta aplicação da Constituição Federal e, como dissemos, dos direitos imprescritíveis dos índios às terras que diferencialmente ocupam, segundo a compreensão do texto constitucional. Ou seja, tratam-se não apenas de "lotes” de terra, mas de espaços complexos, compostos por atributos materiais e imateriais; compreendendo as terras habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, de acordo com o Parágrafo 1° do Artigo 231 da Constituição Federal.

Sobretudo, um Relatório Circunstanciado demonstra, através de documentos e estudos científicos, os nexos fundamentais entre um povo indígena e a terra que ocupa, entre suas estratégias tradicionais de subsistência e, mais que isso, de "existência”, e o ambiente que o circunda, entre sua história e a concepção de espaço que adota. Um espaço que é, neste sentido, insubstituível por outro qualquer, ainda que, por ventura, de igual metragem. Tal é a ordem singular entre um povo indígena e seu "território”, conforme a definição constitucional.

Não há fraude ou invenção nesse processo sério e detalhadamente disciplinado pela Constituição Federal. E tampouco haveria espaço para isso, se consideramos a multiplicidade de profissionais das mais variadas áreas e instituições envolvidas. Trata-se, portanto, de um instrumento valoroso de cidadania, expressão jurídica de direitos e conquistas sociais que tanto tardaram a acontecer no nosso país. Um país que, lembramos, é também de "índios”, conforme sua natureza pluriétnica, devidamente reconhecida pela Constituição cidadã de 1988.

Vulnerabilidade: as populações indígenas representam 0,4 % da população do país, segundo os dados apurados pelo IBGE, em 2010. Cerca de 60% da população indígena está localizada dentro dos domínios da Amazônia Legal. Estas populações apresentam uma rica multiplicidade étnico-linguística e cultural, consistindo em cerca de 220 povos, falantes de cerca de 180 línguas diferentes. São línguas, cosmologias e modos de vida, compondo diferencialmente um patrimônio humano milenar de imensa complexidade e riqueza, normalmente desconhecido do público em geral.

Lamentavelmente, o conjunto formado por esta rica diversidade humana constitui o segmento mais vulnerável da população brasileira. Os grupos indígenas sustentam índices de desigualdade de desfavorável magnitude quando comparados aos segmentos mais desfavorecidos da população. Neste âmbito, são surpreendentes os altos índices nacionais de mortalidade de crianças indígenas, especialmente se consideramos que esta situação se mantém em regiões como a Sudeste e Sul do país, paradoxalmente, aquelas que formalmente apresentam o maior índice de desenvolvimento socioeconômico. É na garantia de um território para seu usufruto exclusivo, livre de práticas contumazes de expropriação e aliciamento, que está uma das chaves mais importantes para uma possível reversão dessa situação.

Da Perversa Metamorfose: não é possível, por força retórica de uma lógica entortada, querer transformar esbulho, turbação e, sobretudo, expropriação pregressa ou atual em uma espécie de tradicionalidade aplicada às avessas em relação ao uso que lhe empresta a Constituição, como o pretendem os seculares métodos de grilagem vigentes nesse país, com ou sem conivência de agentes governamentais. E eis que neste ponto se desvenda a verdadeira metamorfose perversa que assola as "terras produtivas” da "gente que trabalha”, ponto de partida de nossas reflexões: os interesses privados de um pequeno grupo de latifundiários rurais e supostos benefícios econômicos, que não revertem diretamente ao bem-estar da população brasileira, ganham, sub-repticiamente, ares de permanência, imprescindibilidade e imemorialidade. E este é tratado como o único caminho possível e indiscutível para a nação.

A Constituição Federal garantiu aos habitantes originários desta terra, tardiamente chamada Brasil, seus direitos também originários. Isto por razões de ordem histórica e antropológica, mas também em nome do devido resguardo da cidadania de todos os seus habitantes. O reparo de um genocídio continuado e reconhecido, como também a garantia de uma nação plural. Por isso não há o menor cabimento na suposta ideia de que o Estado não deve mais demarcar as terras indígenas, calcada de forma totalmente arbitrária e ditatorial sobre se ter chegado ao "fim” desse processo pura e simplesmente, sem que seus erros (inumeráveis) do passado tenham de ser corrigidos.

É importante também trazer à luz para o público em geral, que não há necessidade de demarcação formal para que o direito originário dos povos indígenas sobre seu território seja efetivamente respeitado, conforme as disposições do Art. 25 da lei 6.001 de 1973, conhecida como o "Estatuto do Índio”. As atribuições de um Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação são, justamente,reconhecer e delimitar, e não propriamente estabelecer os direitos às suas terras. Estas são, nas palavras da lei, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis, conforme o Parágrafo 4° do Art. 231 da atual Constituição Federal. Ou seja, não podem ser transferidas para outrem, usufruídas por ninguém além do próprio grupo e nem passíveis de serem extintas, por qualquer decisão, Decreto ou Portaria. Por esta mesma razão, qualquer ocupação ou empreendimento que tenha lugar nestes mesmos espaços é, por determinação constitucional, nulo e extinto, de pleno direito, conforme os parágrafos 4° e 6°, do artigo 231 da nossa atual Constituição. O mesmo se aplica a atos de exploração de recursos de solo, rios e lagos, que têm efeito jurídico nulo e sobre os quais os índios têm direito de usufruto exclusivo.

Portanto, nem "índios” e nem uma "terra” ou um "espaço” indígenas, são inaugurados a partir de um processo formal de regularização. Ao contrário, sua existência antecede a este processo, que dela decorre. Quando, finalmente, uma Portaria no Diário Oficial da União determina a constituição de um Grupo Técnico que produzirá um determinado Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação e que trata de aspectos múltiplos e interdisciplinares da relação entre um povo e o que ele entende como seu espaço, isto acontece porque a demanda de regularização é já, de fato e direito, legítima.

Neste sentido, os processos de regularização fundiária indígena têm sofrido uma desfiguração muito semelhante àquela que vem reconhecidamente acontecendo aos processos de licenciamento ambiental no país. Assim, ações e decisões de políticas públicas que primam pela cidadania e reconhecimento de direitos sociais duramente conquistados ao longo do tempo, aqueles que vigem sobre a "vida” e sobre as "pessoas”, vão sendo, ao mesmo tempo, soterrados por uma ideia empresarial da nação, que toma o desenvolvimento econômico de forma unilateral e completamente apartada do desenvolvimento humano. Abafando a existência ou a razão daquelas "vozes” de direito, são normalmente evocados ganhos e perdas econômicos, de "produtividade” e outros indicadores que, como sabemos, podem estar em completo desacordo com a realidade da vida das pessoas nas cidades e no campo.

E, no entanto, a prática nos tem mostrado que, mesmo quando reconhecidos os incontestáveis efeitos negativos de determinados empreendimentos, como por exemplo, os hidrelétricos, eles têm sido, sempre, executados. Diante de outras possíveis matrizes energéticas (ou de reaproveitamentos de sistemas preexistentes), e mesmo não cumpridas suas condições jurídicas de estabelecimento e funcionamento, como a consulta pública às populações atingidas, previstas tanto na legislação vigente quanto em pactos internacionais assinados pelo Estado brasileiro, a ênfase recai sobre as vantagens formalmente econômicas de tal ou qual projeto, antes do que sobre seu impacto, muitas vezes devastador, na vida das pessoas.

Trevas ou Luzes? Nada, nem mesmo a ideologia empresarial, pode ser sobreposta à Constituição Federal do país ou justificar sua brutal violação. Seu fim primordial é garantir fundamentalmente o bem-estar de sua população como um todo, o que inclui todos os segmentos diferenciados do país e as gerações vindouras. Mais do que notícias alarmantes e discursos que visam o bem privado, cobramos todos os setores envolvidos, incluindo os meios de comunicação brasileiros, que tornem acessíveis à população, antes de mais nada, as luzes da Constituição Federal do nosso país.

De que tratam e para quem servem os tais caminhos unilaterais de "progresso” e "desenvolvimento” de uma nação, se eles não são acompanhados, passo a passo, por seu desenvolvimento humano e do respeito à sua Constituição?

Neste reduto, o que há são apenas trevas.

Assinam:

Adriana Romano Athila, antropóloga, Santa CatarinaAdriana Strappazzon, antropóloga, Santa Catarina
Ana Beatriz de Miranda Vasconcelos e Almeida, enfermeira, Mato Grosso
Ana Claudia Cruz da Silva, antropóloga, Rio de Janeiro
Ana Maria R. Gomes, antropóloga, Minas Gerais
Ana Maria Ramalho Ortigão Farias, médica, Rio de Janeiro
Ana Paula Lima Rodgers, antropóloga, Rio de Janeiro
André Demarchi, antropólogo, Tocantins
Andreia Fanzeres, jornalista, Mato Grosso
Angela Sacchi, antropóloga, Distrito Federal
Antonio Carlos Mendonça Viana, estudante de antropologia, Rio de Janeiro
Antonio Carlos de Souza Lima, antropólogo, Rio de Janeiro
Antonio Hilario Aguilera Urquiza, antropólogo, Mato Grosso do Sul
Bárbara Maisonnave Arisi, antropóloga, Paraná
Bárbara Villa Verde Revelles Pereira, jornalista, Paraná
Beatriz Carretta Corrêa da Silva, linguista, Distrito Federal
Betty Mindlin, antropóloga, São Paulo
Bruno Emílio Fadel Daschieri, antropólogo, Rio de Janeiro
Bruno Simionato Castro, engenheiro florestal, Mato Grosso
Cândido Eugênio Domingues de Souza, Historiador, Bahia
Carlos Eduardo Rebello de Mendonça, sociólogo, Rio de Janeiro
Carmen Junqueira, antropóloga, São Paulo
Carmen Rial, antropóloga, Santa Catarina
Carolina Souza Pedreira, antropóloga, Distrito Federal
Cassio Brancaleone, sociólogo, Rio Grande do Sul
Cecilia Malvezzi, médica, São Paulo.
Celia Leticia Gouvêa Collet, antropóloga, Acre
Cinthia Creatini da Rocha, antropóloga, Santa Catarina
Clarissa Rocha de Melo, antropóloga, Santa Catarina
Daniel Bitter, antropólogo, Rio de Janeiro
Daniel Garibotti, produtor de documentários, Espanha
Daniel de Oliveira Santos, farmacêutico, Mato Grosso
David Rodgers, antropólogo, Rio de Janeiro
Denise Cavalcante Gomes, arqueóloga, Rio de Janeiro
Diego Giuseppe Pelizzari, indigenista, Paraná
Diego Madi Dias, antropólogo, Rio de Janeiro
Diogo de Oliveira, antropólogo, Santa Catarina
Edison Rodrigues de Souza, antropólogo, Bahia
Edviges Ioris, antropóloga, Santa Catarina
Eduardo Pires Rosse, antropólogo, França
Eliana de Barros Monteiro, antropóloga, Pernambuco
Eliana E. Diehl, Farmacêutica (Saúde Indígena), Santa Catarina
Emanuel Oliveira Braga, antropólogo, Paraíba
Emilia Juliana Ferreira, antropóloga, Distrito Federal
Esther Jean Langdon, antropóloga, Santa Catarina
Eunice Dias de Paula, pedagoga e linguista, Mato Grosso
Fabiane Vinente dos Santos, antropóloga, Amazonas
Fábio Christian de Carvalho, administrador, Mato Grosso
Fanny Longa Romero, antropóloga, Rio Grande do Sul
Felipe Agostini Cerqueira, antropólogo, Rio de Janeiro
Felipe Bruno Martins Fernandes, antropólogo, Santa Catarina
Fernanda Ratto, psicóloga, Rio de Janeiro
Flávio Wiik, antropólogo, Paraná
Flora Monteiro Lucas, antropóloga, Rio de Janeiro
Georgia da Silva, antropóloga, Distrito Federal
Gilberto Azanha, antropólogo, Distrito Federal
Giovana Acácia Tempesta, antropóloga, Distrito Federal
Hein van der Voort, Linguista, Pará
Helena Tenderini, antropóloga, Pernambuco
Hélio Barbin Junior, médico e antropólogo, Santa Catarina
Heloisa Barbati, estudante de Antropologia, Itália
Henry Luydy Abraham Fernandes, antropólogo, Bahia.
Henyo Trindade Barretto Filho, antropólogo, Distrito Federal
Jacira Bulhões, antropóloga, Mato Grosso.
Jackson Fernando Rêgo Matos, Engenheiro Florestal, Pará
Jeremy Paul Jean Loup Deturche, antropólogo, Santa Catarina
João Batista de Almeida Costa, antropólogo, Minas Gerais
José Andrade, antropólogo, Pará
João Daniel Dorneles Ramos, sociólogo, Rio Grande do Sul
José Ronaldo Mendonça Fassheber, antropólogo, Paraná
Juracilda Veiga, antropóloga, São Paulo
Jurema Machado de Andrade Souza, antropóloga, Bahia
Juliana de Almeida, antropóloga, Amazonas
Katia Maria Ratto, médica, Rio de Janeiro
Larissa Menendez, antropóloga, Mato Grosso
Laura Graziela F. F. Gomes, antropóloga, Rio de Janeiro
Lea Tomass, antropóloga, Distrito Federal
Léia de Jesus Silva, linguista, Goiás
Leonardo Pires Rosse, etnomusicólogo, Minas Gerais
Leonardo Santos Leitão, sociólogo, Santa Catarina
Lisiane Koller Lecznieski, antropóloga, Santa Catarina
Lucia Helena Rangel, antropóloga, São Paulo
Lucia Hussak van Velthem, antropóloga, Distrito Federal
Luciana Gonçalves de Carvalho, antropóloga, Pará
Lucila de Jesus Mello Gonçalves, psicanalista, São Paulo
Maria Audirene Cordeiro, linguista, Amazonas
Maria Christina Barra, antropóloga, Minas Gerais
Mariana Corrêa dos Santos, cientista social, Rio de Janeiro
Mariana Cristina Galante Nogueira, servidora pública federal, São Paulo
Maria Dorothea Post Darella, antropóloga, Santa Catarina
Maria Lúcia Haygert, antropóloga, Santa Catarina
Maria Rosário Carvalho, antropóloga, Bahia
Marina Monteiro, antropóloga, Santa Catarina
Marina Pereira Novo, antropóloga, São Paulo
Márcia Leila de Castro Pereira, antropóloga, Distrito Federal
Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque, antropólogo, Rio de Janeiro
Marcos de Almeida Matos, antropólogo, Acre
Marcus Vinícius Carvalho Garcia, antropólogo, Distrito Federal
Maria Fernanda Salvadori Pereira, antropóloga, Santa Catarina
Marlene Lúcia Siebert Sapelli, Educadora, Paraná.
Marta Caravantes, jornalista, Espanha
Martinho Tota Filho Rocha de Araújo, antropólogo, Rio de Janeiro
Matteo Raschietti, filósofo, São Paulo
Maurício Soares Leite, nutricionista (saúde indígena), Santa Catarina
Mauro Silveira de Castro, farmacêutico, Rio Grande do Sul
Miguel Aparicio, antropólogo, Amazonas
Mirella Alves de Brito, antropóloga, Santa Catarina
Nádia Heusi Silveira, antropóloga, Santa Catarina
Odair Giraldin, antropólogo, Tocantins
Paulo Humberto Porto Borges, Educador, Paraná
Peter M.I.B. Beysen, antropólogo, Rio de Janeiro.
Philippe Hanna, antropólogo, Holanda
Raquel Mombelli, antropóloga, Santa Catarina
Renan Reis de Souza, antropólogo, Rio de Janeiro
Ricardo Ventura Santos, antropólogo, Rio de Janeiro
Rinaldo Sérgio Vieira Arruda, antropólogo, São Paulo
Robson Rodrigues, arqueólogo, São Paulo
Rodrigo Marcelino, biólogo, Mato Grosso
Rodrigo Toniol, antropólogo, Rio Grande do Sul
Roberto Salviani, antropólogo, Rio de Janeiro
Robin M. Wright, antropólogo, São Paulo.
Rosângela Pereira de Tugny, etnomusicóloga, Minas Gerais
Senilde Alcantara Guanaes, antropóloga, Paraná
Sergio Baptista da Silva, antropólogo, Rio Grande do Sul
Silvana Jesus do Nascimento, antropóloga, Mato Grosso do Sul
Silvana Sobreira de Matos Patriota, antropóloga, Pernambuco
Sônia Weidner Maluf, antropóloga, Santa Catarina
Soren Hvalkof, antropólogo, Dinamarca
Suzana Castanheiro Uliano, antropóloga, Santa Catarina
Tatiana Dassi, antropóloga, Santa Catarina
Thiago Mota Cardoso, antropólogo, Santa Catarina
Tiago Moreira dos Santos, antropólogo, São Paulo
Waleska Aureliano, antropóloga, Rio de Janeiro
Wellington de Jesus Bomfim, antropólogo, Sergipe
Vanessa Alvarenga Caldeira, antropóloga, São Paulo
Vaneska Taciana Vitti, antropóloga, São Paulo
Victor Amaral Costa, antropólogo, São Paulo
Fórum da Amazônia Oriental – FAOR
Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos/ São Paulo
Comitê Metropolitano Xingu Vivo

terça-feira, 11 de junho de 2013

Servidores da Funai protestam contra “desmoralização” do órgão


Em carta pública, funcionários repudiam “declarações distorcidas na mídia” sobre procedimentos realizados pela entidade e acusam “ala conservadora" do País de campanha difamatória
Fonte: Carta Capital — publicado 05/06/2013 16:44

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Leia também:
Estado foge da mediação de conflitos indígenas, dizem analistas
Índios protestam contra mudança na demarcação de terras
Funai diz que não foi avisada de operação policial que matou índio

Após o governo anunciar na segunda-feira 3 que pretende realizar mudanças no processo de demarcação de terras indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) reagiu. O Planalto pretende levar em conta não apenas os pareceres da Funai, mas também os de outros órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Em carta aberta, os servidores do órgão manifestam apoio aos direitos indígenas e repudiam “as declarações distorcidas veiculadas na mídia nacional sobre os procedimentos conduzidos pela Funai”.

“[As declarações] fazem parte de uma campanha de contrainformação conduzida pela ala político-econômica mais conservadora do país para desmoralizar o órgão, que tem como missão institucional proteger e promover os direitos humanos e sociais dos povos indígenas, especialmente o direito a terra”, diz um trecho do documento.

A mudança nas demarcações foi criticada por analistas ouvidos por Carta Capital, por enfraquecerem a Funai e não resolver os conflitos de interesses entre ruralistas e índios. “O governo tem se furtado de enfrentar o problema que se arrasta há muito tempo. Por isso, a situação persiste e se agrava”, afirma o antropólogo Spensy Kmitta Pimentel, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios.

Na carta, os servidores destacam a qualidade da formação acadêmica de seu quadro e a capacidade técnica destes profissionais em agregar “reflexão crítica ao trabalho indigenista". “Neste sentido, manifestamos nossa profunda indignação em relação à manipulação da opinião pública e convidamos os cidadãos brasileiros a buscar informações imparciais sobre a legislação que fundamenta o processo de demarcação de terras indígenas, enfatizando que, de acordo com nossa Carta Magna, vivemos em um Estado democrático e pluriétnico de direito.”

Os servidores também destacam caber à União a demarcação de terras indígenas “para a garantia da sobrevivência física e cultural destes povos, de acordo com seus usos costumes e tradições, afastando-se a ideia de assimilação/aniquilação dos povos indígenas e suas culturas, que orientou ações de Estado até os anos 1980-90.”

Leia a íntegra abaixo:
MANIFESTO EM FAVOR DOS DIREITOS INDÍGENAS E DO ÓRGÃO INDIGENISTA
Nós, servidores da Fundação Nacional do Índio, vimos a público repudiar as declarações distorcidas veiculadas na mídia nacional sobre os procedimentos conduzidos pela FUNAI, que fazem parte de uma campanha de contrainformação conduzida pela ala político-econômica mais conservadora do país para desmoralizar o órgão, que tem como missão institucional proteger e promover os direitos humanos e sociais dos povos indígenas, especialmente o direito a terra.

Somos antropólogos, historiadores, cientistas sociais, sociólogos, administradores, biólogos, geógrafos, economistas, cientistas políticos, engenheiros, profissionais das áreas de direito e comunicação e demais técnicos de outras áreas, formados nas melhores instituições de ensino e pesquisa do país e filiados às respectivas associações e conselhos profissionais; muitos de nós somos pós-graduados e temos produção acadêmica relevante, agregando reflexão crítica ao trabalho indigenista realizado em âmbito administrativo, inteiramente pautado pela legislação vigente. Neste sentido, manifestamos nossa profunda indignação em relação à manipulação da opinião pública e convidamos os cidadãos brasileiros a buscar informações imparciais sobre a legislação que fundamenta o processo de demarcação de terras indígenas, enfatizando que, de acordo com nossa Carta Magna, vivemos em um Estado democrático e pluriétnico de direito.

Ressaltamos ainda que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, compete à União a demarcação de terras indígenas para a garantia da sobrevivência física e cultural destes povos, de acordo com seus usos costumes e tradições, afastando-se a ideia de assimilação/aniquilação dos povos indígenas e suas culturas, que orientou ações de Estado ate os anos 1980-90. As demarcações de terras indígenas são, portanto, o reflexo de um novo paradigma para uma sociedade verdadeiramente plural, em que povos indígenas têm voz, vez e terras.

Legislação de base (disponível na internet): artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, Decreto 1775/96, Portaria MJ 14/96, Portaria MJ 2498/11, Lei 6001 de 19.12.1973 (Estatuto do Índio), Decreto 5051 de 19.04.2004 (Convenção 169 da OIT), Decreto 591 de 06.07.1992 (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU), Decreto 678 de 06.11.1992 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos da OEA), Portaria n.º 281/PRES e 290/PRES de 20.04.2000 (relativas aos direitos dos povos indígenas isolados e de recente contato).

Servidores da FUNAI

Brasília, 04 de junho de 2013.

A dança das cadeiras na Funai.

Fonte: Carta Capitalpor Henyo Trindade Barretto Filho — publicado 11/06/2013
A recente exoneração da presidente da Fundação, a antropóloga e demógrafa Marta Azevedo, mostra a luta em torno da destinação das terras públicas no Brasil


Para quem acompanha a política indigenista, a recente exoneração a pedido, por motivo de saúde, da antropóloga e demógrafa Marta Azevedo da Presidência da Funai, não deveria surpreender. Ao longo dos seus quase 46 anos de existência, a Funai teve 34 presidentes, contando os interinos. É um presidente a cada um ano e quatro meses aproximadamente.

Uma ONG chegou a cunhar a expressão “galeria da crise permanente” para se referir à galeria dos presidentes da Funai. Nos oito anos dos dois mandatos de FHC foram nove presidentes. Lula quebrou essa tendência ao ter apenas três presidentes em oito anos, dois do quais os mais longevos nessa função. Já a presidenta Dilma caminha para a terceira presidente em menos de três anos de mandato, que, assumindo como interina no lugar de Marta Azevedo, já sinaliza a retomada do ritmo da “galeria da crise permanente”, se aproximando da média nada honrosa de FHC.

É óbvio que a troca de comando da Funai não é, em si mesma, expressiva – ainda mais quando se dá por motivo de força maior. Não obstante, o fato da alternância de comando se dar nessa cadência ao longo de quase toda a história do órgão – fenômeno de que nos damos conta quando se observam quebras nesse ritmo – é um indicador significativo da instabilidade institucional que marca a política indigenista e seu lugar relativamente subalterno em sucessivos governos – não importa quão populares, inclusivos e democráticos se pintem. Outros números e estatísticas são ainda mais significativos, pois permitem observar e correlacionar dimensões não necessariamente visíveis na dança das cadeiras de comando.

Veja-se, por exemplo, o ritmo – no geral – decrescente de reconhecimento de Terras Indígenas (TIs) nos sucessivos governos “democráticos” (tabela a seguir).


Demarcações Terras Indígenas nos últimos governos no Brasil
TIs Declaradas
TIs Homologadas
Presidente
Nº*
Extensão*
Nº*
Extensão*
Dilma Rousseff (2011-2012)
05
18.461
10
972.149
Lula (2007-2010)
51
3.008.845
21
7.726.053
Lula (2003-2006)
30
10.282.816
66
11.059.713
FHC (1999-2002)
60
9.033.678
31
9.699.936
FHC (1995-1998)
58
26.922.172
114
31.526.966
Itamar Franco (1992-1994)
39
7.241.711
16
5.432.437
Fernando Collor (1990-1992)
58
25.794.263
112
26.405.219
José Sarney (1985-1990)
39
9.786.170
67
14.370.486
Fonte: Instituto Socioambiental, abril de 2013

* As colunas não devem ser somadas, pois várias terras homologadas em um governo foram redefinidas e novamente homologadas em outro.

Se somarmos os dados da tabela acima com outros de igual teor para o atual governo – quais sejam, o de que nenhuma unidade de conservação federal foi criada na Amazônia Legal no governo Dilma, que titulou apenas 632 hectares de terras de quilombos (contra cerca de 60 mil hectares nos dois mandatos do governo Lula, segundo dados oficiais do Incra) e assentou por meio do Incra o menor número de famílias registrado desde 1996 – o quadro se completa e fica mais inteligível: estamos diante da maior paralisia dos procedimentos administrativos de destinação e reconhecimento de terras públicas de que se tem notícia nos últimos 25 anos.

Essa inércia em relação à proteção e gestão das terras públicas, em geral, e ao reconhecimento dos direitos territoriais indígenas e de outros grupos, em particular, parece estar articulada a um conjunto de outras estratégias conduzidas em várias frentes por distintos atores sociais que conformam a base de sustentação política do governo: no Legislativo, pela tramitação de proposições (de projetos de lei a propostas de emenda à constituição) que visam extinguir, ou reduzir áreas protegidas, ou flexibilizar suas figuras jurídicas, desconstruir os direitos territoriais de indígenas e quilombolas, e liberalizar a exploração de recursos naturais nas TIs (seja viabilizando a mineração nestas, seja tornando possível a posse indireta destas a produtores rurais na forma de concessão); na interface entre o Executivo e o Legislativo, alterando todo o procedimento de demarcação das TIs e fragilizando as normas relativas ao licenciamento ambiental de grandes obras de infraestrutura; e no Judiciário, por meio de ações judiciais que buscam, ou arguir a constitucionalidade da legislação em torno dos direitos territoriais indígenas e de povos e comunidades tradicionais, ou construir interpretações restritivas aos direitos coletivos e difusos – entre outras medidas em outras frentes. Nas palavras do professor titular do Museu Nacional da UFRJ, João Pacheco de Oliveira, estamos diante da maior e mais violenta ofensiva contra a política indigenista da história – “um fato realmente inédito na história do País”.

Não se tratam, necessariamente, de medidas de má fé, ou de meros deslizes ligados às externalidades negativas de opções políticas e econômicas conjunturais; mas, sim, de desdobramentos gramaticais à atual arquitetura hegemônica da política e da economia do país. Vítima do delírio de crescer economicamente a taxas chinesas e almejando ampliar o superávit primário por meio da exportação de commodities de baixo input tecnológico e superar os entraves de infraestrutura logística ao crescimento de tais exportações – entre outras orientações macroeconômicas; o governo tornou-se refém político do modelo convencional de expansão do agronegócio (altamente demandante de terras e recursos naturais, e socialmente excludente) e do lobby de grandes conglomerados empresariais de infraestrutura, energia e mineração – que atuam simultânea e indistintamente nos três vértices da Praça dos Três Poderes. A primarização da economia brasileira e os sinais de aparente desindustrialização são as expressões mais evidentes dessas orientações, que se traduzem, por sua vez, na importância do agronegócio na manutenção do “PIBinho” [sic].

Considerando que o atual modelo de expansão do agronegócio se assemelha a um "Pacman" de terras e recursos naturais, não surpreende que seus representantes se esforcem para ampliar a oferta de terra barata. A estratégia, agora, tem sido abrir áreas hoje protegidas (TIs, territórios quilombolas, UCs) aos seus interesses econômicos, ou tirá-las do caminho, quando entendidas como entraves à sua consolidação e/ou expansão. Se sentindo rejuvenescidos com o bem sucedido desmonte do Código Florestal, os setores politicamente mais ativos do agronegócio, articulam-se agora para investir sobre o butim das terras públicas – ofensiva que se materializa, como relatado, em várias estratégias e frentes.

Uma destas é a frente midiática e comunicacional. A ofensiva aí se dá por meio da ressurreição de velhos, porém sempre disponíveis, preconceitos em relação aos povos e comunidades que tradicionalmente ocupam essas terras (usualmente tratados como massa de manobra manipulada, sem vontade própria) e da desqualificação das expertises nas quais se assenta o reconhecimento dos direitos territoriais desses grupos, entre as quais, a Antropologia (vista não como uma disciplina científica com conceitos e métodos próprios, mas como uma expressão subjetiva de opiniões). Trata-se de um trabalho diuturno de deslegitimação dos procedimentos de reconhecimento de direitos territoriais (no caso, a demarcação de TIs e a titulação de territórios quilombolas), dos seus beneficiários (povos indígenas e comunidades tradicionais) e dos técnicos (da Funai, mas também de outros órgãos, e eventuais colaboradores) que os conduzem, usando para isso todos os meios disponíveis aos detentores do monopólio da violência simbólica legítima e das grandes corporações de comunicação.

Assim sendo, o contexto atual traz ingredientes novos para se entender as mudanças de comando nos órgãos responsáveis pela gestão do que resta do patrimônio de terras públicas e de territórios étnicos do País, e de seus recursos naturais – entre os quais está a Funai. À sua instabilidade administrativa crônica, resultante do lugar convencionalmente subalterno dessa agenda, deve se agregar o quadro – aqui brevemente traçado – de uma investida sem precedentes sobre tais terras, territórios e recursos no Brasil, e da disputa feroz em torno dos mesmos. De um lado, o governo parece renunciar paulatinamente à obrigação constitucional de proteção dos direitos difusos e das minorias – renúncia esta ancorada na arquitetura político-econômica hegemônica, na investida sobre os direitos territoriais e em uma concepção de País baseada no desprezo pela natureza e pela diversidade.

De outro, os movimentos sociais e os indígenas, em especial, têm respondido por meio das estratégias que se encontram ao seu alcance, a depender dos contextos dos conflitos e dos objetivos em jogo nestes: retomadas de terras ancestrais, ocupações de canteiros de obras e prédios públicos, e ações de desobediência civil (como a resistência a mandatos judiciais de reintegração de posse) – entre outras. Isso ajuda a entender os números levantados pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de 560 índios assassinados no Brasil nos dez anos de governos Lula e Dilma (praticamente um por semana) – um crescimento de 168,3% em relação à média, que já não era honrosa, dos oito anos de FHC.

Em meio a esse cenário, fica-nos (para mim e para vocês leitores) a pergunta: a que determinações respondem (a serviço do quê e de quem se dão) as mudanças de comando nos órgãos responsáveis pela gestão das terras públicas no País?
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Henyo Trindade Barretto Filho é antropólogo e diretor acadêmico do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB).