sexta-feira, 24 de junho de 2011

Minha exoneração

Para: Marcio Augusto Freitas de Meira
MD Presidente da FUNAI - Fundação Nacional do Índio
Assunto: Minha exoneração

Senhor Presidente,

Quando fui convidado a assumir a Coordenação Regional do Rio Negro sabíamos das dificuldades que iríamos enfrentar, depois de anos de má administração e de péssimo desempenho. Mesmo assim, aceitei o desafio, certo de poder contar com seu apoio e de toda Diretoria. Desde então já se passaram quatro meses, e poucas respostas tivemos às nossas reivindicações. Mesmo assim, com o apoio de alguns dos novos servidores, conseguimos superar muitas dificuldades e apresentar planos para a reestruturação da FUNAI em São Gabriel da Cachoeira e nas nove CTL´s hoje desativadas.

Porém, agora percebo a inutilidade de nossos esforços, uma vez que não interessa ao Movimento Indígena ter um trabalho sério, honesto e digno, pois isso vai de encontro aos interesses particulares dos diretores da FOIRN, acostumados com as benesses da parceria com o poder econômico desta instituição, e beneficiados pelo constante pagamento de diárias em eventos sem nenhum resultado concreto.

Como já lhe disse anteriormente, estou acostumado a apresentar resultados sem favoritismos, já que trabalhei durante 35 anos para a iniciativa privada, onde essas práticas abomináveis costumam ser punidas com a demissão sumária de gerentes. Tive uma carreira da qual me orgulho, pela sucessão de excelentes resultados que gerei nas grandes organizações para as quais trabalhei. E não quero macular meu nome.

Sendo assim, e diante das evidências de que nada se muda na Fundação Nacional do Índio, decidi por minha exclusiva vontade solicitar a exoneração dos cargos de Substituto do Coordenador Regional, de Chefe de Divisão e de Ordenador de Despesas, retornando ao cargo para o qual fui conduzido em concurso público: Agente em Indigenismo.

Considerando-se que, depois dessa decisão, pouco haverá que eu possa contribuir para a instituição, em São Gabriel da Cachoeira, e diante das frequentes ameaças a que venho sendo submetido, sem reclamar a ninguém, tendo assumido por minha própria vontade os riscos a que estava exposto, solicito também minha remoção para a Sede em Brasília, onde poderei contribuir nas áreas de Informática, de Etnodesenvolvimento ou de Geoprocessamento, com as quais tenho grande familiaridade e competência.

Justifica-se, também, esta solicitação pelo fato de que minha família (esposa, filha e neto) residirem em Brasília, local onde minha esposa é servidora pública, vinculada ao Governo do Distrito Federal, na área de Saúde Pública. Dessa forma, permanecerei como servidor público em São Gabriel da Cachoeira até que esta situação seja definitivamente resolvida.

Peço-lhe que seja designado imediatamente um substituto para os cargos que eu ocupava, pois não tenho nenhum interesse em continuar com essas obrigações.

Sendo esta a declaração de minha vontade, e sendo este um pedido em caráter irrevogável, agradeço sua atenção e providências, reiterando meus mais elevados protestos de estima e consideração.

Atenciosamente,

João Carlos Figueiredo
ex-Coordenador Regional do Rio Negro, AM
Portaria FUNAI Nº 204/PRES, de 07/02/2011

domingo, 19 de junho de 2011

O Dilema da Emancipação Étnica

 Este é o tempo em que minorias assumem o protagonismo de suas vidas e, no entanto, mesmo entre essas populações marginalizadas há um tratamento desigual e injusto. Senão, vejamos: enquanto os descendentes das tribos africanas são, no máximo, considerados “quilombolas” e confinados em territórios onde, na maioria das vezes, mal é possível a sobrevivência, os descendentes dos povos tradicionais da América do Sul são tratados como nações independentes, com imensos territórios preservados, legislação específica e generosa e grandes volumes de recursos para estimular sua transição para a sociedade capitalista. Já os afro-descendentes levam anos para conseguir receber seu título de quilombola, e isso é apenas o começo: às vezes são necessários outros tantos anos para que sejam reconhecidos como seres humanos pelos seus algozes, geralmente latifundiários que cercam suas pobres terras confinadas às margens de um rio ou no sertão mais perverso, pela escassez de chuvas. Se os indígenas têm dezenas de ONG´s repletas de recursos estrangeiros para investir em suas tradições seculares, já os quilombolas, deixados à margem de nossa história, sequer sabem o que é uma ONG!
Mas falo aqui dos dilemas da emancipação étnica, e esse dilema não existe em nenhum dos dois casos citados. Quilombolas serão segregados enquanto a cor de sua pele não se dissolver na miscigenação racial, ainda que nas novelas globais os personagens digam o contrário. Já os indígenas, dificilmente aceitariam essa emancipação, pois perderiam as imensas vantagens conquistadas nos processos de demarcação de suas terras. Alegam que precisam dessas terras para pescar e caçar, para mover sua roça pelas campinas ou baixios, ou mesmo pelos terrenos desmatados; ocorre que a cada dia esses indígenas abandonam suas tradições em troca das modernidades, sejam elas boas ou não.
Falo da bacia do Rio Negro, na região conhecida como “Cabeça de Cachorro”. Aqui, as zarabatanas foram substituídas pelas espingardas; a pesca com timbó ou flecha deu lugar às tarrafas, redes, anzóis ou mesmo aos tanques de piscicultura. Nas comunidades, cada vez mais urbanas, as “vantagens” do capitalismo “solidário”: luz elétrica, internet, celular, antenas parabólicas, televisão, novelas que destroem os valores tradicionais desses povos... cachaça, drogas, prostituição, contrabando, crimes hediondos...
Para algumas etnias, a língua escrita ou falada já desapareceu, e eles assimilam uma farsa trazida pelos religiosos salesianos: o nheengatu, uma língua híbrida e simplificada, traduzida dos Tupinambás e imposta aos alunos dos internatos onde sabe-se lá o que se ensinava, além das letras e números... e os filhos da floresta já não acompanham seus pais e se apegam a outras fantasias do consumismo: as roupas e penteados exóticos, a música tecnobrega importada do Pará, as boates onde rolam sexo e drogas...
Nesse “paraíso” no meio da selva amazônica os esgotos correm pelas sarjetas até encontrar um igarapé, deixando seu cheiro fétido pelo caminho; o lixo se acumula a céu aberto a menos de 10 km do centro da cidade; no final da noite, as sarjetas abrigam os embriagados pelo “caxiri” moderno, temperado a cachaça e emborcado sem parcimônia.
Diante desse cenário sem retoques, o que pensar dos líderes que defendem seus interesses acima das sociedades que representam? Aqueles que querem as benesses do capitalismo sem abrir mão das vantagens quase monárquicas de preservar metade da Amazônia para seu deleite, exploração de minérios, extração de madeira, tráfico de drogas, só para citar alguns poucos vícios adquiridos e defendidos à exaustão...
Dilema? Que dilema existiria no (des) conforto dessa (in) decisão?